Em 2011, Luan Luando mandava buscar verdades sequestradas da população negra brasileira por meio do livro “Manda busca”, em que descarregou poemas cortantes para desnudar o discurso da “democracia racial”, que tanto assolou, e continua a assolar, o cidadão marginalizado pela dinâmica da “meritocracia”, a qual faz sentido apenas entre – e para – as camadas mais abastadas da população. E o cidadão, cujo desenvolvimento foi sufocado por políticas que não visavam transcender a sua condição de marginalizado, é o indivíduo negro. O mesmo negro que julgaram incompetente e pouco produtivo para viver sob a égide do Capitalismo, sendo, assim, substituído pela mão de obra europeia que, de acordo com a mentalidade eugenista da época, expurgaria em três gerações a mácula negra na biografia do Brasil.
No entanto não foi o que aconteceu, pois é notório
que negras e negros são historicamente humilhados pela ideia de que seu
fracasso é o resultado de uma espécie de “preguiça coletiva”, já que os números
levantados por qualquer instituto de pesquisa no Brasil apontam o fato de que
as periferias do país são majoritariamente compostas por famílias negras, e que
o fato histórico encontra respaldo no processo de abolição o qual, segundo
Abdias do Nascimento (1978), não está completo porque o negro não tem sido
totalmente integrado à sociedade brasileira, sofrendo do que muitos
especialistas nomeiam como “racismo estrutural”, haja vista a falta de
representação negra nas estruturas de poder do país levam-no à humilhação, à
segregação e à morte da qual muitos jovens negros brasileiros estão sujeitos tal qual o personagem do poema
“Cidadão”, de Luan Luando:
Cidadão
Crianças do meu Brasil
que a sociedade não viu.
Aquelas crianças cujo leito é a rua.
tomam banho de lua.
Na rua escura,
morre uma criança pura.
Torna-se dura e firme,
entra na faculdade do crime,
leva um tiro na cabeça e outro no coração.
Essa criança
só queria ser um cidadão.
Embora esse texto seja ficcional, a realidade que ele
representa é muito visceral e ocorre porque os programas de integração do negro
à sociedade surgiram mais de cem anos depois da assinatura da Lei Áurea, isto
é, os negros e negras no Brasil permaneceram numa espécie de limbo jurídico por
mais de um século, desdobrando-se para sobreviver numa sociedade que a todo
instante se mostrava hostil à sua presença, tolhendo sua liberdade por meio do
cárcere, pela dificuldade do acesso à educação, ou lhes negando o direito ao
voto e ao livre culto da religiosidade de matriz africana. Mesmo depois da
abolição, as pessoas afrodescendentes no Brasil foram tratadas como um hóspede
indesejado, pior, como um passado do qual não se quer lembrar por representar o
atraso do país frente as outras nações do mundo nas quais a escravidão já não
fazia mais parte dos seus projetos político-econômicos e cujos processos de
industrialização se mostravam muito adiantados.
Ademais o sentimento de competição que o
Capitalismo moderno sustenta foi importado para o ideal de raça a ser
perseguido numa sociedade: o ideal branco. Isso porque uma das maiores
conquistas da eugenia, senão a maior, tem sido o colorismo que vem pautando e
ceifando as vidas negras nas periferias do Brasil. No entanto, a morte do negro
pelo colorismo ocorre muito antes da suspensão dos seus sinais vitais, haja
vista a miscigenação transmite uma falsa ideia de que todas as raças no Brasil
convivem harmonicamente quando, na realidade, desconsidera a herança histórica
que todo negro brasileiro possui e está para além da quantidade de melanina na
sua pele, mas lhe tem sido indeferida: a negritude é anterior à Senzala e a todos
os horrores da escravatura em território americano. Então, a estratégia em
definir o convívio do povo brasileiro como harmonioso devido à miscigenação é
uma tentativa nefasta de apagar o negro e todas as outras raças que
desfavorecem o ideal branco de sucesso, de família, de religião ou de comportamento.
Logo, ao dizer que um indivíduo é TUDO menos o que ele realmente é (negro, por
exemplo), mitiga a dimensão do que ele pode ser: um cidadão livre e atuante nas
esferas de poder da nação.
Devido a isso todo negro brasileiro, consciente ou
não, recebe uma alta carga negativa do seu passado que, ao contrário do
imaginário popular, transborda ainda no presente da sociedade, sobretudo no que
tange aos instrumentos de repressão que visam conformar o negro do lugar que
lhe é forçado permanecer, a área de serviço. Acerca disso Luan escreveu:
Chibata
Tentam forçar o terrorismo
nos morros, becos e vielas.
Aqui, jaz mais cândido
o Almirante negro da favela.
Quinhentos anos se passaram
as opressões não mudaram.
Ainda existe sinhô,
Ainda existe feito,
jagunço, capataz
e capitão do mato
caçando o mulato
com seu jeito brutal!
Hoje temos o policial.
A chibata não acabou e nem sumiu: evoluiu.
A chibata queima no lombo quando olham para o
umbigo
e dizem: - não é comigo!
A chibata está no cassetete
que priva o manifestante de exercer seu direito.
A chibata é o preconceito
entre semelhantes.
[...]
(Luan Luando, 2011)
A chibata que “evoluiu” é aquilo que os
observatórios da violência e os Fóruns de segurança pública brasileiros têm
apresentado em estatísticas que assustam, e também anestesiam, as periferias do
país, o negro é o “inimigo público número 1 na sociedade”, já que ele é quem
mais sofre violência policial como se tivesse o fenótipo do crime intrínseco a
sua condição: negro, marginalizado e pobre. O que o poema “Chibata” aborda não
é uma justificativa aos dados levantados pelos institutos de checagem sobre
ações truculentas da polícia militar, principalmente nos grandes centros
urbanos do país, mas um sintoma em resposta à repressão estatal sofrida por
negros e negras desde o romper do cativeiro e muito antes disso. Outrossim,
esses versos denunciam como membros das periferias são transformados em agentes
punitivos de sua própria gente, isto é, o que Kubrick idealizou como uma
distopia em “Laranja mecânica”, o Estado brasileiro normatizou como conduta
padrão da sua polícia militar: tornar o negro o “feitor” do próprio negro a fim
de suprimir a reação desse contingente contra o genocídio sistemático promovido
pelo establishment político e social.
Por isso que o Movimento negro brasileiro fomentou
ações para reparar a condição marginalizada do afrodescendente por mais de
vinte anos até que resultaram na criminalização do racismo e das práticas
discriminatórias em solo nacional (diretrizes que fizeram parte da constituinte
de 1988), porém, os agentes da lei, aplicadores do direito, vem constrangendo a
sociedade ao não punir ou não investigar seriamente os casos de racismo
envolvendo não só a sociedade civil, mas também agentes públicos que abordam
o cidadão periférico negro “com o seu
jeito brutal” em contraste com o tratamento dispensado para os membros das castas
superiores da sociedade brasileira, os quais não se constrangem ao
manipular a lei em favor próprio para serem absolvidos dos crimes que comentem
contra as minorias políticas. Por essa razão muitos juristas, como Eunice
Prudente e Silvio de Almeida, defendem a ideia de que o agravamento das
violações dos direitos à educação, liberdade e à igualdade da população negra
brasileira é devido ao racismo visceral na infraestrutura da sociedade,
refletido na truculência, morosidade e no descaso dos agentes públicos, que
protegem um nicho social específico (elite branca) e prende/mata outro nicho
social específico (negros periféricos) – pesando vida e morte conforme o
quociente de melanina nas veias do suspeito. Necropolítica.
Essa Necropolítica, de acordo com Achille Mbembe (2018)
é um expediente que distingue “quem pode matar de quem deve morrer” numa
sociedade em que o racismo configure sua infraestrutura, isto é, mesmo que não
seja explícito na sociedade quem são aqueles que, de fato, tem poder num país, esse
poder fica evidente nas pautas das estruturas de uma sociedade racista como a
brasileira. A exemplo disso, o poema “Na mira” do livro “Para não dizer que não
falei das ruas”, de Cocão, retrata o cotidiano da juventude negra que cresce em
um dos distritos mais marginalizados da cidade de São Paulo: o Jd. São Luís.
Na mira
Sem cinto
sem chance
sem céu
sem chão
São Paulo
seus alvos
são filhos
sem pão
Sem sorte
sem teto
sem honra
sem rumo
são marcas
são almas
sem plano
sem mundo
[...]
Sem samba
sem dança
sem graça
sem grana
são muitos
são negros
são mitos
sem fama
(Cocão)
As negativas e os predicativos no poema, além dos
versos curtos e lancinantes – como as redondilhas do I-Juca Pirama de Gonçalves
Dias, revelam um personagem ordinário do cotidiano paulistano que, diferente do
guerreiro Tupi cuja linhagem ele próprio cantou com orgulho, cumpre o papel de
direcionar nossa percepção para o apagamento sistemático que a juventude negra tem
sofrido tanto no encerramento da própria vida pelo polêmico excludente de
ilicitude quanto na negação das suas mais legítimas referências: as
personalidades negras das quais o poder social emanou e aos poucos se tornaram
“mitos sem fama”. Além disso, se fosse feita uma comparação livre entre o poema
novecentista e o poema periférico do século XXI, facilmente se perceberia
projetos de povo brasileiro muito distinto entre si, haja vista o Brasil
experimentado pelos poetas das periferias na atualidade não é romantizado
apenas por um distanciamento estético ou histórico, mas também devido ao compromisso
assumido por esse mesmo poeta junto à parcela da sociedade que tem sido atacada
com políticas pelas quais o Negro tem o seu papel como agente fundamental na
construção material e imaterial do país negado.
Se realmente vivêssemos em uma democracia racial em
que as experiências e oportunidades vivenciadas por negros e brancos fossem
iguais, o número de mortos pela polícia não teria cor, a fila do desemprego não
teria cor, o contingente de analfabetos no país não teria cor, a falta de
saneamento básico nas periferias não teria cor e a terceira maior população carcerária
do mundo também não teria a cor negra recusada nas tomadas de decisões do
planalto central. Portanto a representatividade é necessária para que os
verdadeiros agentes da história negra no Brasil façam frente às tentativas de
aniquilamento da sua participação no curso dos acontecimentos que formaram o
país, tais como o processo de abolição da escravatura, a lei de cotas no ensino
superior e, inclusive, o ensino da cultura afro-brasileira na formação básica
dos jovens da nação (este último enfrentando sérios problemas na formação
docente, o que dificulta a sua implementação junto aos alunos).
Assim que mais personalidades negras passaram a ser
resgatadas pelo movimento negro brasileiro, ficou evidente que no Brasil – e em outros países
americanos que utilizaram a escravidão como meio para o desenvolvimento
econômico da colônia – as mesmas pessoas que lavraram a terra, talharam o ouro
e transportaram as commodities coloniais também contribuíram para o
crescimento intelectual desses países. No Brasil, por exemplo, há tenazes
personagens importantes para a trajetória do negro em todo o seu processo de
resistência durante os quase quatro séculos de cativeiro. Negros como Luís Gama,
que emancipou outros tantos negros ao criar jurisprudência que respaldasse a
causa abolicionista, ou José do Patrocínio, em cujo manifesto da Confederação
abolicionista do Brasil seu nome consta como redator além das acusações que
fazia sobre a ilegalidade do cativeiro negro e ao descaso do Estado brasileiro na
fiscalização da lei Feijó (que colocava fim ao tráfico negreiro) ou André
Rebouças, o engenheiro que, mesmo monarquista e assimilado pela cultura da
elite branca do seu tempo, lutava pela integração de toda pessoa negra à
sociedade brasileira como um indivíduo livre e dotado de direitos.
Em outras palavras, é importante resgatar e reverenciar
os combatentes negros do passado que estiveram na linha de frente da
resistência contra o cativeiro e que trabalharam incessantemente para fomentar
políticas públicas a fim de que a população marginalizada do país, sobretudo a
negra, possa se desenvolver hoje sabendo que seus ancestrais não foram passivos
no processo de abolição. Afinal, representatividade é tudo na construção da
cidadania e, mesmo que haja um movimento que tenta apagar, quando não
distorcer, a atividade das lideranças populares do passado, poetas periféricos
como Akins Kintê frustram essas tentativas com muito lirismo, criatividade e ginga
por meio de uma estética engajada que se distancia da ficção eurocentrada e
hegemônica, reescrevendo a história com palavras que representam, não humilham
nem diminuem ou relativizam as dores dos negros e negras do país.
Malungo
Porque povo somos nós
e não somos o invés
solto à sorte estamos a sós
juntando quaisquer réis
alvo assim dos playboys
no pulso seus anéis
preso nossos pés
embargada nossa voz
Acredito no invés
nós assim por nós
unindo forças através
e não ser isca de anzóis
de pálidas cascavéis
pra gente outros faróis
livre albatroz
remo firme dos batéis
E nós assim por nós
e já foi invés
um tempo triste e atroz
embaixo do convés
maldade assim veloz
de milhão foi mais de dez
pro prazer dos coronéis
pra fome do feroz
Prefiro o invés
nós assim por nós
massacrando os cruéis
defendendo os avós
pra não ter revés
o segredo dos ebós
bagunçando o algoz
confundindo os infiés
[...]
É pra nós que é de nós
não alimentar o invés
nos corações paióis
Nos desesperos pontapés
brotar na gente sóis
enche de riso os tonéis
saber quem tu és
é saber quem somos nós
(Muzimba – Akins Kintê)
Resumindo, o reescrever, ou melhor, o resgate das
linhas históricas que escritores e escritoras da periferia têm feito inspirados
pela trajetória de Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Milton Santos e
outros teóricos, e heróis, ativistas e escritores negros e negras é um
chamamento para o compromisso assumido por todo o negro e negra muito antes do
seu nascimento, porque “saber quem tu és / é saber quem somos nós”, ou seja, o
resgate da negritude ampara a tomada de consciência a fim de entender e assumir
que o legado da negritude brasileira também é de muitas lutas e de muitas
vitórias, não apenas de violência nas mãos dos “Senhores” de escravizados .
Dessa forma é que se quebra a lógica e a expectativa de políticas que fazem de
cada indivíduo periférico um alvo pronto para ser abatido, aceitando ou não o
lugar que lhe foi devido por meio de políticas racistas, eugenistas e
contraproducentes da sociedade na qual seu apagamento já foi previsto.
Felizmente previsão não é ciência, porém o povo preto consciente é resistência.
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