TRADUZIR ESTE BLOG

Radio Mixtura - www.radiomixtura.net.br

 ~

Transformação

Transformação
Entrevista com poetas

terça-feira, 21 de julho de 2020

O popular e o erudito na literatura periférica




Meu caro amigo

Meu caro amigo
me perdoe se quiser
Voltei a ti com uma resposta
Tô numas mesmo de ver qual que é
Dessas ideias tão oposta

Aqui na Terra
Tão passando o cerol
O racismo e iniquidade cai no rol
Branquidade da cidade tão em prol
Mas o que eu quero lhe dizer
Que a coisa aqui não tá preta

Antes tivesse

Nem com prece ameniza a situação
E a gente ainda existe e resiste
Nesse mundo
Perseguem e assassinam jovens pretos
Num segundo
Ninguém segura o caveirão
[...]
(Akins Kintê, Muzimba – na humildade sem maldade)


Vale lembrar que “Meu caro amigo” é uma paródia da célebre canção de Chico Buarque, de mesmo nome, lançada em 1976 como um desabafo frente ao regime militar instaurado no Brasil cerca de dez anos antes da sua publicação. Originalmente composta como um Choro, essa música representa exatamente o que é: um lamento  pelo período político pelo qual o país atravessava naquela década, logo, o poema de Akins Kintê resgata e atualiza esse mesmo sentimento, porém voltado para a realidade das periferias paulistanas, sobretudo para a condição do jovem negro periférico que é perseguido, violentado e morto pelo Estado brasileiro sistematicamente ainda na atualidade, visto que “a coisa não estar preta” é um repúdio ao ambiente hostil e inóspito que o país tem se tornado para o Negro brasileiro ao mesmo tempo em que se contrapõe à falta de equidade no tratamento da memória daqueles que foram torturados física e psicologicamente pela ditadura brasileira como se o Negro estivesse num limbo político e não sofresse a mesma ou mais intensa repressão do regime.

Portanto esse poeta periférico não poderia ter sido mais certeiro ao escolher o choro para representar a síntese do seu lamento pela descortesia com a qual a juventude negra é tratada na terra que tanto foi lavrada e de onde tantas riquezas foram extraídas por seus ancestrais para a construção do Brasil e, como esse gênero musical nasceu nas senzalas do século XIX – já que tem o Lundu como um dos seus componentes –, utilizá-lo para denunciar as injúrias sofridas pelo povo preto brasileiro na sua própria terra é ao mesmo tempo um resgate e um convite à ancestralidade dessa gente sem ser enfadonho ou anacrônico, pois vive e resiste no imaginário do leitor, ao passo que insere gírias e abreviações comuns entre ele.

Se, conforme Antônio Cândido, uma obra depende mesmo da sua estrutura literária para resguardar a sua função social e histórica, os escritores periféricos se valem de expedientes literários que instigam o leitor a aprofundar-se nas referências encontradas no texto para, assim, extrair o máximo de informação possível como numa verdadeira caça ao tesouro, entretanto, a “recompensa” é a saída desse leitor do obscurantismo que se encontrava antes de experimentar o contexto artístico do texto lido.

Por outro lado, a erudição na escrita periférica também é um resultado decorrente do estudo cuidadoso que o autor faz da sua própria conjuntura, o qual não dependa necessariamente de passar pelo crivo da academia. Entretanto, o conhecimento organizado e adquirido por meio da leitura dos clássicos literários não é alheio nesse tipo de literatura, mas incorporado às suas linhas, quase como num processo antropofágico (parafraseando Oswald de Andrade), ou seja, a academia não dita nem valida a estética periférica, mas o escritor oriundo da periferia agrega aquilo que lhe convém da academia para melhor representar o lugar de onde parte a sua obra, a favela. Desse modo, a academia cumpre perfeitamente a sua razão de ser: um instrumento para fomentar e possibilitar a comunicação estética que aproxima o autor da obra e esta do leitor.

A exemplo disso, por conseguinte, o trecho abaixo extraído do romance “Becos da memória”, de Conceição Evaristo, serve como exemplo da forma pela qual uma metáfora aparentemente simples é incorporada ao cotidiano de uma favela de tal maneira que a imagem gerada por ela só funcionaria na caracterização de um ambiente semelhante ao da periferia, mas o que é semelhante à favela é a própria favela, então essa metáfora só funciona para caracterizá-la, pois mesmo que ela seja entendida facilmente por qualquer um que já tenha visto uma favela, ainda que por intermédio de uma tela, tal metáfora só pode ser sentida por quem já vivenciou igual “amontoamento”. Logo, a escrita periférica pode ser compreendida como um exercício de desenvolvimento comunitário, ou de construção da identidade partilhada por toda uma comunidade.


“Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela”.
(Evaristo, Conceição – Becos da memória)


A literatura periférica, porém, sempre teve consciência de que é uma literatura diferente daquela praticada fora do seu espaço físico, e ela sobrevive, resiste e expressa sofisticação a ponto de ganhar status e espaço de Literatura em cursos universitários pelo país. Hoje, por exemplo, essa modalidade literária é estudada na USP, UNICAMP e UNESP, para citar algumas das maiores universidades paulistas.

No ensino formal, por exemplo, as diferentes gerações do Modernismo brasileiro são esquadrinhadas por meio dos representantes que expressam um olhar particular das regiões de onde partem suas obras: Mário e Oswald de Andrade tiveram a cidade de São Paulo como inspiração, Manuel Bandeira se dividiu entre Recife e o Rio de Janeiro, J G Rosa dedicou-se aos conflitos físicos e psicológicos das vidas enveredadas no norte de Minas Gerais, Jorge Amado encantava-se nas belezas e contradições da região cacaueira baiana – em especial a cidade litorânea de Ilhéus, Clarice Lispector, embora fosse radicada em Maceió, apresentou em sua obra personagens que tiveram a essência de suas vidas sugadas e trituradas por uma Rio de Janeiro urbana e em constante transformação. Não obstante os autores periféricos desconstroem a escrita nesse período que se convencionou chamar de Pós-Modernismo para extrair a partir dela a identidade da periferia inspirada em representações genuinamente criadas nos barracos de madeira das favelas, como o RAP, o samba, o funk; e buscando referência nos autores de outrora: a sensualidade de Jorge Amado inspira poesia erótica declamada em slams e saraus nas barras das cidades, o lirismo de Manuel Bandeira e as imagens sensoriais de Cecília Meireles também estão presentes nos versos e nas prosas de autores e autoras que encontraram na literatura não só uma forma de se expressar artisticamente, mas também pensar as feridas causadas por um cotidiano de lutas, conquistas, tragédias, privações, anseios, amores, transformações e aprendizado coletivo.

Esse fenômeno não expressa uma disputa de valor entre obras, autores, ou “escolas literárias”, mas a importância de se reconhecer os espaços de representação em cada obra, em cada autor e em cada tendência literária, porque a força criativa da periferia precisa se ver representada na academia e em outros meios de reconhecimento e divulgação artística, por isso festivais como o Cooperifa, Percurso, Felizs, e tantos outros eventos que fomentam a atuação da periferia no circuito artístico brasileiro são espaços tão importantes para que as editoras passem a se interessar por essas obras e seus autores que, a exemplo dos modernistas da primeira metade do séc. XX, não rejeitam os cânones, mas não deixam de criticar e de propor uma constante reflexão sobre o que é considerado arte no Brasil.

Outro elemento importante na literatura periférica é o “cenário”, ou seja, o espaço urbano relegado à classe trabalhadora das grandes cidades brasileiras, pois é nesse “amontoado” de casas ladeadas por um intrincado sistema de becos, vielas e córregos que a recortam e a delimitam que os heróis periféricos residem e passeiam; percebendo-se ou não eles estão em constante processo de transformação e de edificação das suas raízes, ora ancestrais ora de pertencimento a um espaço coletivo. E esse espaço coletivo de fuga é a favela, do descanso entrecortado pelo crime e pela repressão do Estado, da experiência compartilhada pelo sentimento de abandono; e da esperança de um dia sair dessa situação porque a periferia é um espaço percebido como transitório.

Em “Amanhecer Esmeralda”, Ferréz deposita na menina Manhã o sonho de uma vida melhor longe da favela sem deixar de fora a percepção da realidade limitante que cerca toda vida periférica, a começar pela negação do direito de ser criança.


“já estava na terceira série, talvez fosse professora, dentista, advogada, havia aprendido a sonhar, mas também a pensar com os pés no chão e não gostava disso, quando se imaginava limpando a casa de alguém por toda a vida que nem sua mãe, uma tristeza invadia seu corpo.”


A discussão que o autor propõe nessa breve narrativa infantil é a de que a Educação pública ofertada a crianças na mesma situação vulnerável em que está a protagonista não as favorece para pleitearem as profissões de prestígio na sociedade da qual fazem parte, mas para ocuparem funções subalternas e mal remuneradas nessa mesma sociedade, isto é, a realidade e a sua implicação na ressonância dos sonhos das pessoas são os postos-chave nessa obra. Desse modo, Ferréz faz algo semelhante ao que fez Graciliano Ramos no romance “Angústia”: descrever os ambientes e as sensações sufocantes que permeiam os personagens para criticar o atraso da sociedade brasileira e a maneira hipócrita como  ela lida com suas contradições.

Ademais a estética da periferia tem um modo próprio de se organizar, um ritmo próprio de acontecer e de se reconhecer nas suas mais genuínas representações artísticas. Isso lhe confere sons que só podem ser produzidos nos seus domínios, iguais aos lamentos das duas personagens que trocam ideias entre um trago e outro de cerveja dentro de um dos muitos Botecos semelhantes ao do conto “Um teco do boteco: ou ‘eu (m)acho que se fodeu’”, de Augusto Cerqueira.


“ninguém nem os via naquele canto de bar; mas é privilégio nosso saber agora o que os outros não ouviram e nem podem ouvir. eis: ‘sabe qual é a verdade, bróder? eu nunca vi mulé niúma dispensar o cabra da pensão só pelo prazer de abrir a boca e dizer: não preciso de filho da puta nenhum pra criar o meu!
‘eu acho que deve ter, deve ter...’
‘deve ter, mas eu nunca vi. ganhadores de mega sena. essa mesmo que acaba de desligar o celular na minha cara toda bravinha, me cobra trezentos reais que eu pulei uns meses atrás aí. porra, ela é sei lá o que da TAM. viaja o brasil todo...’”
(Augusto Cerqueira)



Nesse conto o narrador está mais próximo de uma rubrica do que de um narrador propriamente caracterizado, pois sua função se restringe apenas a situar espacialmente onde os dois personagens estão dentro do estabelecimento para que a cena seja preenchida com o dinamismo do diálogo travado entre os dois. Essa conversa levará o leitor a perceber que um dos falantes comete o crime de abandono parental, mas ele não o reconhece porque está imerso na cultura patriarcal que permeia as relações sociais vigentes ainda hoje em qualquer camada social, sentindo-se, inclusive, injustiçado pela cobrança de uma quantia a qual essa mulher que é “sei lá o que da TAM” poderia muito bem cobrir – ao que parece o valor devido de uma pensão alimentícia de responsabilidade do personagem. Mas o que mais surpreende nessa narrativa é a sua estrutura, a começar pela quebra das referências da escrita convencional: pontos e vírgulas aparentemente aleatórios e o uso da minúscula no lugar da letra maiúscula predominam na redação do diálogo, além das muitas marcas de oralidade que forçam o leitor a se enquadrar no ritmo da narrativa, ainda que para isso ele tenha que se desprender de pré-conceitos formais que carregue em si. Essa aparente falta de lógica no texto é um recurso cultivado desde o início do séc. XX sob a influência do Cubismo, vanguarda europeia materializada por meio do humor, da ironia e da transgressão sintática.

Então a Literatura periférica pode ser entendida não só como um objeto de apreciação artística muito sofisticado, mas também como um expediente restaurativo do universo que a forma, porque ela não apresenta uma mera reprodução de dores, ou uma simples representação dos valores sociais na favela ou apenas uma crítica da sociedade que a exclui. Essa literatura praticada nas periferias brasileiras reúne uma estrutura psicológica, textual e simbólica digna de estudo, apreciação e reverência por sua originalidade e legitimidade junto àqueles que a produzem. Tal efeito é percebido nos seguintes versos da Michele Santos,


Memorabilia

Você fez curso de datilografia
e se apaixonou perdidamente
pela Macabéa
gostar:
“parafuso e prego
- e o senhor?”

[um dia um prego me entrou
na rua/no calcanhar
estava em chinelos
estava a caminho,
Olivetti Lettera
- tec-tec-tec-tec

volver a casa, duas quadras
irrompido o sangue rubro-ébano
(tétano! tétano!)
no fim daquilo tudo, nada
Aquiles morreria de inveja]

hoje
são as máquinas que nos batem
nunca tive tétano e
rio

[gostar ainda é parafuso e prego]

(Michele Santos – Toda via)



O lirismo nesses versos demonstra o que o antropólogo Roque Laraia definiu como os múltiplos caminhos  por onde cada cultura segue conforme as experiências históricas pelas quais passou, ou seja, a evolução temática e estrutural nesse poema e em toda a produção dos escritores da periferia evidencia como a cultura se desenvolve num processo orgânico de acumulação, de seleção, de exclusão e de conservação dos saberes compartilhados entre os membros de uma comunidade. Outrossim, as formas pronominais “você” e “me” utilizadas de modo coloquial, apelando para a riqueza figurativa na simplicidade dessas expressões orais que contrastam com o uso inusitado dos verbos “volver” e “irromper” – no contexto desse poema –, além da justa medida de humor ao evocar a figura do herói grego que não resistiu a uma flechada no calcanhar, são mostras da engenhosidade discursiva dessa autora que pode ser definida como “cria da periferia”. Por essa razão que é possível considerar a Literatura periférica um amálgama do erudito e do popular.



REFERÊNCIAS

KINTÊ, Akins, Muzimba. 2ª ed. São Paulo: Edição do autor, 2016.
FERRÉZ. Amanhecer Esmeralda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
SANTOS, Michele. Toda via. São Paulo: Edição do autor, 2015.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 12ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.
LARARIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.


Se você leu até aqui, fica o nosso MUITO obrigado e o nosso Axé no fomento da sua caminhada. E saiba que o Sarau Verso em Versos, assim como esta coluna, é feito por você também, pois todos construímos e somos protagonistas da nossa história.

Então deixe o seu comentário sobre esse e outros assuntos abordados na nossa página e, também, sugestão de temas sobre os quais você gostaria de ler mais por aqui.

Um salve para quem nos salvam.

Axé!

Nenhum comentário:

Postar um comentário