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Transformação

Transformação
Entrevista com poetas

sábado, 17 de outubro de 2020

Uma visão anticolonialista sobre a literatura Periférica


“... Neste instante, neste país cheio de Machados se achando serra elétrica, nós somos a poesia: essa árvore de raízes profundas, regada com a água com que o povo lava o rosto depois do trabalho”.

(Literatura das ruas, Vaz)


No passado, a Academia ditava o que era Literatura e o que servia como Cultura para a periferia, atualmente, após seminários como esse – entre outras manifestações acadêmicas –, essa mesma Academia tenta se reinventar num contexto em que os agentes dessa mesma periferia já não estão mais tão distantes da escrita da sua própria história e naturalmente das suas estórias também; essas pessoas, porém, tornaram-se autores e autoras de grande requinte literário, graças a uma escrita que mescla a tradição com os coloquialismos próprios de cada “quebrada”. Por essa mesma razão que o poeta Sérgio Vaz abre cada encontro do quilombo cultural que passou a chamar de Cooperifa com o chamamento “Povo lindo! Povo inteligente”, o qual conclama todos, absolutamente todos os viventes das margens da cidade, já que esse é o povo que tem o rosto, a voz e a poeticidade da periferia.


Não raro os escritores periféricos são entendidos pela Academia como escritores menores ou poetas exóticos; mas é essa Academia que se propõe a estudá-los, talvez para lhes impor o rótulo que melhor caiba a sua compreensão, conforme seus matizes, talvez para reparar a injustiça de tentar imputar ao cidadão marginalizado o desejo mesquinho de “superar” a favela. Em todo caso, não só os acadêmicos, mas também parte dos consumidores de Literatura enxergam como marginal o “poeta-cidadão”, aquele que mangueia no asfalto sua poesia; porém esses poetas e poetizas “dos becos e vielas” são potências que dão voz a uma legião de pessoas as quais vivem em estado de invisibilidade e não se veem representadas em nenhuma esfera da sociedade em que estão inseridas, tampouco nos escritos tradicionalmente aceitos como Literatura pela Academia.

Esse olhar cuidadoso sobre o próprio lugar de fala é percebido nos versos de Michele Santos, na sua “Sociedade dos poetas vivos”,


Entre xenófobos e lobos bobos

a ingenuidade dos utópicos

não vai salvar florestas

as ruas dos esquecidos nos trópicos

partindo poetas,

você viu?

não dá uma coluna de jornal

em que caiba

o espelho da gente gourmet que não reflete as caras sertanejas em que me enxergo

[e os poetas do asfalto não serão resenhados por Antonio Candido


Literadura

“é feia, mas é uma flor”

muitos maus poemas

inda são melhores

que poesia alguma

perceba

o intento é o alento dos incautos

para o que os salvam


inclusive de si


E os professores de língua

Portuguesa do Brasil

ainda pensam que ensinam

o emprego dos porquês

(Michele Santos, 2015)


É certo dizer que esse poema descobre uma face do Brasil ainda não compreendida sequer “pelos professores de língua portuguesa...”, a poetiza do sarau Sobrenome Liberdade que, valendo-se do verso livre, cubista e de sintaxe fluida, resgata os valores dos “poetas do asfalto”, esquecidos e negligenciados pela ditadura editorial de cujos olhares o poeta marginal escapa graças a sua originalidade – nenhum demérito. Para Michele Santos, o Brasil está mais para a flor de Drummond do que para os sabiás de Gonçalves Dias, ou para o burguês redondo de Plínio Salgado. O Brasil, tal qual a Literatura periférica avança “Sobre searas: sarau” poderia muito bem ser a chuva de flores amarelas no vilarejo fictício de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez, ou a chuva que adia as ações daqueles moradores, do mesmo livro.


[...]

A palavra carrega em si o poder do encanto

mas que não se finde nela o alumbramento

estético

o que procuro dela é o 

espanto

a traduzir os lapsos do cotidiano

e perceber o milagre

das flores amarelas chorando sobre Macondo

(Michele Santos, 2015)


Por esse e outros poemas em que a intertextualidade percebida, e que se faz perceber, presente em grande parte das produções dos autores periféricos como Michele Santos é um lastro precioso para o fortalecimento da “quebrada”, um acompanhar sem “mãos dadas” para que o leitor exercite a sua própria curiosidade ao mesmo tempo em que aprende um pouco mais sobre as influências dos autores que o representam e são, muitas vezes, seus vizinhos de porta.


Acerca disso, o psiquiatra martinicano Frantz Fanon já nos anos 1950 chamava atenção ao dizer que “falar é existir absolutamente para o outro” (Fanon, 1952), isto é, ter voz significa exercitar o direito de usá-la como instrumento de poder e de tomada de consciência de que ele, o poder, é uma instância em disputa também no campo discursivo. Destarte a Literatura produzida na periferia carrega em si a responsabilidade de libertar o seu povo do sentimento de inferioridade diante da cultura Central elitizada e, por meio de uma representação original e legítima da sua identidade cultural, descolonizar a alma da periferia.


E por que é importante “descolonizar”? Ora, porque o colonialismo, segundo Fanon, não permite a liberdade plena do indivíduo, haja vista os valores que aquele preserva são unicamente os da classe dominante, branca (é importante que passemos a marcar o lugar de fala dos poetas periféricos). Esse colonialismo perverso marca a vivência do morador da periferia, que teve e ainda tem a sua história negada; e em cujo corpo resistem as marcas de uma civilização inteira levada à marginalização para servir a um contingente branco e excludente, o qual compreende a íntima correlação entre Cultura, Coletividade e Liberdade, por isso impediu e ainda tenta inviabilizar o cultivo das expressões artísticas mais legítimas do cidadão periférico, entre elas a sua Literatura.


“A descolonização é, em verdade, criação de homens novos” (FANON, 1961). Não é por acidente que Fanon se vale da palavra “criação” para demonstrar que um novo indivíduo resulta desse processo doloroso e violento que é descolonizar-se dos padrões limitantes impostos por meio da coerção social, já que ter a mente colonizada é aceitar as estruturas de poder como se fossem naturais, mesmo percebendo que o mundo se divide nas grandes cidades em dois: um pertencente às classes dominantes e outro onde se é permitido às classes dominadas viver, a periferia.


Embora o indivíduo esteja subjugado às margens da cidade, é no território periférico que ele pode também exigir a sua humanidade subtraída por quem não o aceita de outra forma senão rastejando, sem sapatos, luz, água, esgoto ou pão. Entretanto, como a vida se desenha principalmente nos intervalos, é nos saraus e slams, após o expediente, que a Literatura se cria, e os mais ousados usam esses espaços para divulgar seus livros que foram diagramados, revisados, editados e, muitas vezes, confeccionados, por eles próprios.


Ray Bradbury escreveu “Fahrenheit 451” para defender o livro como um instrumento de salvação e de tomada de consciência, da mesma forma como a literatura periférica o faz: em que seus autores através de poemas, contos, romances, Raps, cordéis, entre outras manifestações artísticas escritas, vêm ajudando a periferia a se livrar dos preconceitos existentes contra si mesma e, sobretudo, se livrar da sua alienação psíquica, o que fez durante décadas o negro pós-abolição ainda se sentir como um cidadão de segunda categoria, apartado da sua terra, da sua gente, e da sua história.


O que se pode compreender a partir da leitura de Bradbury, em uma analogia livre, é que a cultura dominante tem negado ao cidadão periférico o título de condutor da sua própria cultura por meio da falsa ideia de que ela – indígena, africana... Popular –, não tem espaço no campo das representações brasileiras porque o Brasil possui uma cultura uniforme, miscigenada e alinhada com valores globais. É o ranço da “Democracia racial”.


Contudo, contrário a essa visão limitada de mundo, Rás Sidmar no conto “Toque de recolher” explora a singularidade dos agentes da periferia.


- Fábio!


Somente sua mãe o gritava.

- Vai compra pão filho!

Mandava.

- Tá bom mãe.

Respondeu.

Pisou no barro abaixo da cama, calçou o chinelo rider e vestiu a regata.

Abriu a porta do barraco e já foi cumprimentar o irmão mais novo.

Salveee!

O moleque acenou com a cabeça, sorrindo enquanto brincava no quintal com um carrinho faltando rodas.

[...]

Por onde passava cabeças caiam, olhares fugiam e bocas se calavam. Até os mais velhos se encolhiam e poucos o cumprimentavam.

[...]

(Rás Sidmar, 2016) 


Nesse conto, o protagonista é construído quadro a quadro como se fosse seguido de perto por uma câmera que o acompanha do despertar, respondendo ao chamado da mãe, ao seu fim trágico após ser reconhecido por um rival. O que Rás Sidmar consegue captar pela palavra escrita cativa o leitor por possibilitar que este – pertencendo ao mesmo ponto de partida de Fábio, o protagonista do conto – acione sua vivência de “quebrada”: da venda da esquina onde se compra fiado, das ruas de números e sem nome, das vielas, córregos e pinguelas que recortam os bairros cujos nomes não representam a realidade do seu dia a dia (Jd. Esperança, Recanto feliz...), do medo constante do “movimento”, dos tiroteios e das cobranças de dívidas a céu aberto conforme a tensão construída no trecho abaixo revela.


Saiu novamente pra quebrada, arrastando os pés, como se estivessem muito pesados.

Logo que passou pela cerca, desceu a trilha feita no mato e entrou no cômodo de paredes quebradas, puxou o primeiro bloco e cavou um buraco com um pedaço de madeira.


Ela brilhou, então guardou sua pistola na cintura e seguiu em direção ao bairro Recanto Feliz, que de nada tinha de feliz, pelo menos à primeira vista.


(Rás Sidmar, 2016)


Estruturas narrativas como essa, que encadeiam as ações em um plano de continuidade, e privilegiando descrições dinâmicas, possibilitam ao leitor criar um vínculo com a personagem, de tal maneira que o autor precisa apenas dosar a projeção que esse leitor já construiu em seu próprio imaginário para que ele mesmo antecipe o clímax e seja surpreendido quando sua expectativa for quebrada no desfecho. É exatamente o que Rás Sidmar atinge nesse conto em que o “rapaz comum” se torna mais um corpo coberto por jornal numa viela qualquer de uma Vila periférica onde a vida segue sua rotina (a)normal.


Por isso que o signo da escritura periférica é a Coletividade, isto é, a consonância entre as escolhas estéticas do autor, o meio e o público, mas sem a limitação teórica de que o autor “de quebrada” escreve apenas para um público “de quebrada”, porque a questão não é para quem o autor escreve, mas sobre quem ele escreve. Desse modo, a obra de autores como Rás Sidmar, Michele Santos ou Sérgio Vaz não se limita a um espaço geográfico nem à periferia da Literatura.


Ademais, a luta de descolonização da mente é contra o apagamento cultural e contra o subdesenvolvimento econômico dos agentes da periferia e, conforme Cândido (2011)


“A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.”


 À proporção que experimentamos as expressões legítimas da Literatura como um público ativo, conforme sugere Antônio Cândido, é que compreendemos o quanto uma escrita descolonizada é tão certa quanto o lirismo do poeta “ambulante” Jefferson Santana no poema “Não é de hoje”


[...]


Não é de hoje que tenho um coração

carregado de sentimentos no meio do peito,

uma bomba que intensifica meu sangrar.


Não é de hoje que estou numa realidade

sem ter um sonho

que livre discorra por ela.


[...]


Não é de hoje

que, apesar dos pesadelos que eu tenho que enfrentar,

vivo pelos meus sonhos

e no meu coração ainda guardo coisas muito valiosas.


A polissemia, a subjetividade e as trocas semânticas (como metonímias, por exemplo) presentes nesses versos sugerem o quanto o poeta-cidadão-ambulante é como o arco-íris de Oxumarê: força vital do movimento de tomada de consciência de que a Literatura não pertence a ninguém além do Tempo e dos seus criadores, os malungos da periferia.



Referências:


CANDIDO, Antônio, Literatura e sociedade (2011)

FANON, Frantz, Os condenados da terra (1961)

FANON, Frantz, Pele negra máscara branca (1952)

SANTANA, Jefferson, Pétalas e pedradas (2014)

SANTOS, Michele, Toda via (2015)

SIDMAR, Rás, Terra de gente (2016)

VAZ, Sérgio, Literatura, pão e poesia (2011)

 

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