Esse território é uma potência que, hoje, começa a ser explorada pelos seus próprios moradores, o que diz muito sobre a literatura oriunda desse lugar. Thata Alves, nos versos abaixo, assim o apresenta:
Pira
inspira
Respira
Deixa na mira
Todo traíra
Que prometeu um dia
Trazer alegria constante
Em nossa periferia
Atira
Com eloquência ou com gíria
Nessas falsas promessas
Nessas mentiras
Proclame palavra que se sinta
De forma íntima
A agonia desse povo
Que se inclina
Diante de tanta hipocrisia
Dessas falsas filosofias
Falsas histórias
Que a frágil educação na escola ensina
Essas falsa beleza exposta na mídia
E quando tudo for chacina
Quando se revoltar um dia
Por não ter alcançado o topo da colina
Por ver seu povo largado na esquina
Pira
Respira
Inspira
E se dirija ao mágico sarau do Pira
Experiência de vida!
(Thata Alves, 2015)
Pira é o apelido dado pelos moradores ao Bairro do Piraporinha, no extremo sul da cidade de São Paulo, onde ocorrem eventos culturais tanto na Casa de Cultura quanto na praça – ícones daquele lugar –, aos quais a poetisa alude ao se referir à experiência de se frequentar o “mágico” sarau daquele lugar, que é a cura das angústias da vida e edificação do indivíduo diante das poucas políticas públicas para o desenvolvimento da região para além das vagas promessas de políticos oportunistas. Ademais, nesse poema notam-se os verbos de ação “deixa, atira, proclame, pira, inspira, respira e dirija” no imperativo para colocar o leitor em sintonia com a proposta do Eu lírico de reclamar o espaço público para si e para os seus, ao mesmo tempo em que se cura da própria angústia devido à imersão num sistema falacioso de meritocracia, existente apenas para negar ao cidadão periférico o direito de viver num espaço pleno, saudável e bem estruturado, porém para que isso aconteça o leitor precisa “deixar na mira” o seu direito e dever cívico de cobrar políticas públicas para o seu próprio território, isto é, o Eu lírico desperta o leitor incauto para uma atitude menos passiva diante dos seus direitos e deveres como cidadão.
Lélia Gonzalez, sobre a questão da distribuição dos territórios, postulou que os espaços no Brasil são racializados, visto que o lugar do negro é limitado ao cubículo insalubre e amontoado nas bordas das cidades e, como se não bastasse a precariedade desse lugar, ainda é constantemente vigiado e oprimido pela força policial do Estado, enquanto o espaço do branco é amplo e irrestrito e, mesmo que em condomínios fechados com segurança privada, esse contingente não negro habita as regiões centrais das cidades, que são mais planejadas e possuem amplo acesso à infraestrutura fornecida pelo Estado, o qual não está presente para reprimir, mas para garantir a segurança e permanência desse território. O que Gonzalez, pesquisadora e cofundadora do MNU (Movimento Negro Unificado), apontava no início dos anos 1980 era que o plano de integração da população negra no Brasil sempre foi para que ela ocupasse o lugar da servidão, da falta e da exclusão através de moradia e trabalho precarizados. No entanto, a Literatura que emana do movimento das periferias reivindica o contrário, que o desenvolvimento desse espaço acontece devido ao movimento das lutas populares, inclusive por meio das palavras. E com licença ao poeta, não é uma luta vã, não tem sido.
MOVIMENTO NEGRO: um aparte
Antes de haver um movimento negro, sobretudo unificado, existiam organizações populares que movimentavam a periferia numa participação intensa na vida cultural brasileira: agremiações carnavalescas, terreiros de religiões afro e muitas frentes negras espalhadas pelo país. Essas entidades eram como quilombos para o negro, e para todos na periferia, se proteger e se desenvolver num Brasil que tem se apresentado a ele como um Estado violentamente racista.
Os versos a seguir do rapper Dugueto Shabazz evidenciam o movimento que recusa um Brasil aberto à periferia apenas para que ela sirva como mão de obra barata e aviltada para aqueles que manobram a política a fim de inviabilizar a vida dos mais pobres.
Vamos pra Palmares
Depois que a noite cair e a treva dominar
O cagueta dormir e o sentinela passar
Eu vou de novo fingir quando silêncio reinar
Aí vou sorrir quando o candeeiro apagar
Trincar por cima do pano para a corrente quebrar
Desmuquifar o aço faca de cortar jugular
Arrebentar os grilhão pro meu sangue circular
Chamar os nego irmão forte pra capoeirar
Vamos rezar um duá depois do salat al ichá
Guardar palavra de Allah amarrar no patuá
Uma estrela e o crescente para nos guiar
Vamos sentido oriente que eu conheço um lugar
Aonde não tem sinhô aonde não tem sinhá
E o nego pode comê o que o nego plantar
Onde morrer é melhor viver pra paz é lutar
'Conteça o que acontecer nóiz tamo indo pra lá
Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Mesmo que no caminho me sangrem os calcanhares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Mesmo que os inimigos contra nós sejam milhares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares
Enfrento os Borba Gato e os Raposo Tavares
Eu vou pra Palmares, Eu vou pra Palmares…
[...]
E que meu sangue regue o solo de nossos lares
Pois todos quilombolas são nossos familiares
Indios e foras da lei renegados e populares
Mal quistos e mal vistos vindos de vários lugares
Você não tá sozinho por que nós somos seus pares
No levante contra bandeirantes militares
[...]
(Dugueto Shabazz)
Claramente a referência dessa letra é o quilombo dos Palmares (1595 - 1695), primeira e única organização popular que visou estruturar a sociedade brasileira, pois, ao invés do que muitos negacionistas pensam, em Palmares houve o convívio democrático entre negros e não negros, que faziam valer a soberania daquele local, ainda que mantendo comércio (não de escravizados, obviamente) com seus vizinhos. E por esse quilombo ter sido um lugar de pessoas livres, celebra-se hoje, no Brasil, a vida e a luta dos “palmarenses” liderados por Zumbi – último, não único, grande líder daquela comunidade –, não o dia da assinatura do documento o qual virtualmente deu a liberdade ao povo negro brasileiro.
Por isso que “Vamos pra palmares” representa um convite ao enfrentamento da seletividade da história do Brasil oficial, como cunhou Machado de Assis na coluna assinada por ele no Diário do Rio de Janeiro em dezembro de 1861. E nesses versos, como em grande parte da produção periférica, os coloquialismos servem para simular a espontaneidade da fala do português brasileiro, aproximando leitor e Eu lírico, desde um desvio de regência “Aonde não tem sinhô aonde não tem sinhá” a uma falta de concordância “Arrebentar os grilhão.../Chamar os nego irmão”, muito comum mesmo entre pessoas com níveis elevados de escolaridade, diga-se de passagem, porque esses recursos validam a sintaxe do povo, àquele que Manuel Bandeira apontava como quem “fala gostoso o português do Brasil”.
Ademais, ao invocar a figura de Allah, Dugueto faz referência ao sagrado que protege esse negro que, embora sequestrado para servir, negou ser mercadoria em terra estranha, o que contribui para que o leitor possa vislumbrar a apreensão desses cativos antes dos eventos funestos que a fuga deles inevitavelmente desencadearia. Por outro lado, toda a tensão instaurada ao longo dessa narração é catarseada pelas estruturas concessivas no estribilho “Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares/Eu vou pra Palmares” o qual, ainda que em primeira pessoa, sintetiza as vozes plurais e dispostas a sacrificar as próprias vidas para preservar o direito à liberdade, reconhecendo-a como uma conquista coletiva: “E que meu sangue regue o solo de nossos lares/Pois todos quilombolas são nossos familiares”. Por conseguinte, ir para Palmares, hoje, é o movimento natural em busca de uma vida livre e plena “sem sinhô nem sinhá”. “Vamos pra Palmares” não é uma “Pasárgada”, não é fuga, mas um aquilombamento.
Poetas, poetizas, rappers e romancistas da marginalidade literária como Dugueto veem em Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus, Cuti e Solano Trindade, para citar os mais conhecidos, a vanguarda desse movimento literário, já que esses autores e essas autoras enfrentaram o racismo e a exclusão por meio de uma estética da resistência.
Operação pente fino
muitos cortaram careca
escorregaram na gosma de inúmeros alisantes
ou se acariciaram com ferro em brasa sobre o couro cabeludo
outros até à nuca
desesperados se cobriram
com as cavalares perucas
e não adiantou nada
por mais lucro havido
na indústria de cosmético
jamais o racismo
mesmo com seu riso químico
será ético
neste comércio
nutre-se da inferiorização constante e seu complexo.
(Cuti)
A reflexão proposta pelo Eu lírico nesse poema de Cuti é compartilhada pelos muitos moradores das periferias que têm sua autoimagem aviltada por padrões impostos para humilhá-los e mantê-los inertes da sua própria herança cultural: o pixaim, o alisado, o assanhado, o trançado, enfim, todos os estilos cabem numa cabeça bem feita na querença de uma Sanga negra.
Assim, a literatura de quebrada, livre na forma e nas ideias, representa um contraponto à Literatura única impressa nos manuais pela Academia que valida o que é e o que não é Literatura, da mesma forma como os autores nordestinos e riograndenses se levantaram contra a noção reducionista de Brasil nos escritos dos autores da “Semana de 22”. Além disso, a literatura dos “becos e vielas” é a crônica dos movimentos populares os quais moldaram a sociedade brasileira, visto que “o negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como igual”, nas palavras de Abdias do Nascimento.
Portanto, a estética da periferia é um movimento literário que não glamouriza a favela ou a exclusão social na qual as pessoas desse território vivem. Além disso, ela representa um ponto de mutação ou de ruptura da inércia e da negligência da Academia para com uma literatura tão autêntica como é a literatura das periferias.
Se vidas negras importam, deve-se ficar mais atento aos movimentos culturais das periferias.
Referências
Abdias do Nascimento, Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, 1978.
Cuti, Sanga. 2002.
Dugueto Shabazz, Zumbi Somos Nós - Diáspora Afronética, 2020.
Lélia Gonzalez, Lugar de negro, 1982.
Thata Alves, Em reticências, 2015.
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