A literatura rompe com o lugar comum da fala empregando um modo próprio de se expressar. Entretanto essa arte não se aparta da realidade já que a usa como referência, mas exige dos seus adeptos, isto é, do escritor, que esteja conectado com o mundo do qual a sua linguagem irá partir. Por essa razão é que a escrita periférica tem sido tão peculiar: ela agrega o colorido das pessoas e das favelas subjugadas pela elite e apagadas pelo poder público e, ao tratar da situação do negro, o empoderamento é mais contundente quando essa escrita é afrocentrada, isto é, praticada por autores negros.
Percebendo a importância de se acessar a seara literária com uma produção afrodescendente, a editora Quilombhoje – por exemplo –, dá visibilidade a uma escrita desprestigiada pela Academia dos cânones da Literatura brasileira e, há mais de quarenta anos, tem formado autores e leitores negros em diferentes periferias do Brasil na prosa e na poesia por meio dos seus “Cadernos negros”.
Essa literatura revela a capacidade de superação, do amor na infância, da dúvida no futuro, da morte e de tantos outros temas universais que perpassam, também, a existência e as mãos pretas. Entende-se, assim, que a produção literária negra é uma celebração e uma libertação, além de engendrar uma rica estética na poesia, na crônica e no conto brasileiro.
Como a linguagem literária chama a atenção sobre si mesma, as marcas de oralidade, os coloquialismos e a quebra da sintaxe formal presente nos muitos autores da periferia, delegam ao leitor a tarefa de mergulhar numa realidade provocativa e perturbadora, decifrando gírias, galgando ritmos e conectando uma sintaxe popular com o lugar de fala desses escritores e escritoras negros e negras, que não explicam sua obra, mas também não negam os clássicos, conforme advertiu Solano Trindade. Nessa escritura independente, publicada longe das grandes editoras e lançada nos vários saraus espalhados pelas cidades é que o leitor encontra o que há de mais visceral na literatura afroscentrada.
No entanto, essas obras não tratam de uma escrita da ou para a periferia, mas uma escrita Na periferia, de uma perspectiva inerente no morador mais afastado dos centros urbanos das cidades brasileiras, a exemplo do que fez Carolina Maria de Jesus em seu “Quarto de despejo”, já que ela transgride o imediatismo da sua realidade por meio de uma imersão metafísica e poética na sua condição de favelada, ou de “uma mulher cujo pecado foi a maternidade” e tal qual Carlitos sonha ser mais do que aquele lugar a limita.
Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetaculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meus agradecimentos.
(Carolina Maria de Jesus)
Acerca disso Antonio Cândido postulou que o escritor não fica alheio ao grupo social o qual pertence seu público leitor, visto que a obra literária se condiciona a ele em certa medida dialógica, modificando o seu comportamento e formando uma identificação que pautará, muitas vezes, a sua obra.
Por isso, todo escritor depende do público. E quando afirma desprezá-lo, bastando-lhe o colóquio com os sonhos e a satisfação dada pelo próprio ato criador, está, na verdade, rejeitando determinado tipo de leitor ideal em que a obra encontrará verdadeira ressonância. Tanto assim que a ausência ou presença da reação do público, a sua intensidade e qualidade podem decidir a orientação de uma obra e o destino de um artista
(Cândido 2011)
Em outras palavras, a obra periférica é uma construção social em colaboração entre escritor, escritura e o público leitor; o lugar de fala, outrossim, também é preponderante nessa literatura tão peculiar aos seus praticantes.
Essa pegada literária do lugar-personagem é uma inovação interessante. Não é mais objeto dos devaneios românticos sobre a paisagem, não é mais fator determinista das ações como no Naturalismo, não é mais índice nacional como no Modernismo, nem cenário hiper-real do Pós-Modernismo. É um local eloquente, um fator literário e textual forte tão importante quanto seus habitantes
(HOLLANDA, Heloísa B de. Apresentação. In: VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia, 2011)
Produzir literatura no Brasil tinha sido um privilégio apenas da elite desde a gênese do registro literário brasileiro. No entanto, do clamor por espaços públicos mais plurais, por arte e por educação de qualidade, o poeta-cidadão declamou a revolta de um “povo lindo e inteligente” inserido numa realidade pulsante de lirismo contra o flagelo do silenciamento forçado a partir da negação da liberdade artística. Esse cidadão-poeta se percebeu poeta e se encontrou cidadão, não aceitando a exploração dos seus, desprovidos de oportunidades e encolhidos por políticas medíocres cujas medidas apenas fomentam o apagamento do protagonismo da periferia no cenário cultural brasileiro.
Embora seja consenso entre autores como Massaud Moisés, Alfredo Bosi e Antonio Cândido, três dos maiores críticos da nossa literatura, que a escrita brasileira passou a ter as feições do Brasil a partir do século XIX, é sabido que uma enorme parcela desse Brasil não participava da literatura e quando era mencionada, não protagonizava sua própria história ( Bertoleza e Rita Baiana em “O cortiço”, de Aluísio Azevedo, são exemplos disso, pois representam uma caricatura da mulher brasileira desprestigiada por ser afrodescendente, ocupando apenas o espaço da hiper-sensualização e da total submissão ao homem branco), logo personagens como a mulher questionadora no poema “Academia”, de Débora Garcia são mais sensíveis ao retrato da negritude brasileira legítima, que impõe sua originalidade ao olhar fantasioso e falacioso de parte da academia literária que ainda sofre do complexo de colonizado:
Academia
A negra quer dançar
E com fé saudar seus orixás
Saias rodadas
Adornos da fé.
[...]
Todos a aplaudem
Na academia
Cultura negra
Entretenimento é?
A negra quer falar
Sua condição denunciar
Ela sabe argumentar,
questinoar, responder,
ações afirmativas defender.
[...]
O salão esvaziou-se
Na academia.
Cultura negra
Entretenimento é.
(Débora Garcia)
Desse modo aliterações e assonâncias combinadas a versos irregulares, pouco comuns na poesia cânone, porém difundida entre os poetas periféricos, visa a criar uma sensação de movimento dinâmico na ação poética que tem a dança ou a música como elementos centrais – como nos versos “Gira a roda / A roda gira / Todos a aplaudem / Na academia” –, deixando evidente o quanto a poesia negra tem a contribuir com os estudos literários brasileiros, visto que a “roda”, isto é, o movimento circular ritmado personificado na roda “de expectadores” ou “da vida” é o símbolo da mudança de paradigma social protagonizado por agentes negros e negras que passaram a figurar na arte escrita do Brasil apenas no início do século XX em autores que ainda são pouco prestigiados no nosso século, salvo Solano Trindade, Lima Barreto, Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus.
Se os autores periféricos não fossem engajados, ou se fossem alheios à sua realidade, talvez a escrita que praticam continuaria no obscurantismo de classificações genéricas como “marginal” ou qualquer outra que não lhe conferiria prestígio. Entretanto, o engajamento do escritor-cidadão torna a sua arte única, consumível e diligente. Negar isso, é negar o que seja a própria Literatura.
[...]Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção.Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nascem da múltipla escolha.A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer.Da poesia periférica que brota na porta do bar.[...]Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.[...]
(Sérgio Vaz, 2011)
Nesse trecho do “Manifesto da antropofagia periférica”, a exemplo do que fez Oswald de Andrade no seu próprio manifesto de 1928, Sérgio Vaz verbaliza o sentimento dos agentes-escritores-engajados-cidadãos da periferia em efervescente atividade cultural no início do século XXI e, apresentando um nicho da sociedade que ainda não havia sido devidamente representado na cena literária brasileira, também proprõe uma revisão da história dessas pessoas ao lembrar da luta pela resistência e liberdade dos afrodescendentes que migraram da senzala para a periferia, essa “senzala moderna”, mas hoje protagonizam a retomada de consciência de que ocupar os espaços de poder é o meio mais efetivo para reparar a exclusão secular que gerou uma cultura de medo e acovardamento diante da exploração de um estado escravocrata sofrido desde o tempo do cativeiro pelos filhos e filhas dos primeiros negros que povoaram as áreas mais afastadas dos centros urbanos: as periferias. Assim, a antropofagia periférica não corresponde apenas à estética dos seus artistas, mas também à necessidade de não se limitar ao perímetro urbano, deixando-o apenas para servir ao patrão.
Finalmente pode se dizer que o “artista-cidadão”, ou seja, o artista da periferia é dotado da sensibilidade necessária para refletir na obra o seu lugar de fala, cuja especificidade o torna difícil de ser representado por aqueles que não vivem ou já tenham vivido numa construção irregular e mal acabada de alguma rua estreita e pouco iluminada, ou de uma viela ou escadão com portas e janelas improvisadas em meio ao esgoto a céu aberto e aos santinhos políticos em ano de eleição. A estética da periferia guarda consigo um movimento literário de grande potência nacional, numa rede de células que se agitam e corroboram para visibilizar a própria periferia. Essa é a rede dos saraus e dos slams que representa a voz do brasileiro que está no alicerce da nação.